Que danado é Cultura?|Roque Samudio

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:

Esta pedra de ferro futuro aço do Brasil;

Este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;

Este couro de Anta estendido no sofá da sala de visitas;

Este orgulho, esta cabeça baixa…

Itabira é só uma fotografia na parede,

Mas como dói!

(Confidências de um Itabirano – Carlos Drummond de Andrade)

 

Meu Caro Amigo, hoje, pegando a deixa do Grande Poeta, queria lhe falar sobre uma coisa que todos temos, absorvemos, guardamos e ensinamos. Todos sem exceção. Essa “coisa” é a cultura, a nossa, a dos outros, a que nos faz vivos e únicos. A cultura é uma coisa engraçada da qual todos usufruímos sem sentir e muitas vezes, do mesmo modo a rejeitamos.

Às vezes por causa dela ficamos intransigentes, nos sentimos superiores ou inferiores, principalmente quando nos encontramos longe das nossas origens, mas quando estamos no “nosso meio” não percebemos o quanto fazemos parte dela.

Imagine que estivéssemos em nosso espaço habitual, de repente passa na nossa frente um grupo de Maracatu Rural ou Caboclo de Lança brincando o carnaval e, nessa passagem, não percebemos muito além das vestimentas, da alegria passageira que gera em nós todo aquele ambiente com o som estridente dos apitos, ganzás, caixas, surdos, e outros, e não somos conscientes de que isso somos nós e, ao mesmo tempo, que nós fazemos parte disso.

Porém se estivermos longe do nosso lugar de origem e tivermos a oportunidade de ouvir esses mesmos compassos, nos domina uma vontade de fazer parte da brincadeira, de nos vestirmos igual, de participarmos do grupo e ainda ensaiar uns passos sem nunca mais parar com essa brincadeira, afinal, o grupo me conhece e eu sei quem eles são. Isso é Saudade? Talvez…

Como você sabe, não sou daqui, e quero lhe explicar com um exemplo pessoal o que me coube viver e o que quero expressar com tudo isto. Num domingo de preguiça me dividia entre ler um livro, deitado no sofá da sala e assistir à televisão de soslaio temas sem importância. De repente, entre os parágrafos da interessante história do livro e o som da tevê, ouço uma melodia suave e o canto de um coral de crianças que, incialmente entoavam um cântico num idioma que não era português e não era espanhol, porém me era conhecido.

Paro! Presto atenção. Algo me atrai nessa melodia e nesses versos. Me concentro melhor ouvindo atentamente até descobrir o que me atrai nisso tudo…e, em poucos segundos, no tempo exato de um relâmpago, dei um pulo!! Livro de um lado, sofá do outro e um grito!! Era uma mistura de alegria, euforia e profundo amor que me vinha do mais fundo do meu ser. Chamei minha esposa e minhas filhas para que vissem, para que ouvissem comigo e que pudesse eu compartilhar com elas daquela alegria, daquele momento!

Entre minha mudez entrecortada com meus gritos dizia a elas, que nada estavam entendendo nessa cena toda: “eu estou entendendo o que eles dizem! Eu estou entendendo tudo o que eles cantam…!!”. E efetivamente estava. Se tratava de um grupo de crianças indígenas de uma Aldeia da Tribo Guarani*, de São Paulo, cantando uma música religiosa no seu idioma que também é o meu, na qual pediam a benção do Padre Criador…

Além de mim ninguém entendeu nada, nem da cena, nem do canto. Confesso que naquele momento perdi um pouco o chão… Esposa e filhas nada entenderam além da alegria de eu estar ouvindo aquilo e que me deixava feliz. Viajei, literalmente, para o tempo e o lugar de onde eu vinha, às minhas origens, com um sentimento indescritível que não passava pela simples saudade e sim por algo muito mais intenso, profundo, mais denso, mais meu, para outro universo, outra dimensão. Existia um sentimento, uma sensação que me dizia que aquilo era meu, que era eu mesmo, que eu pertencia àquilo que ouvira e que aquilo me pertencia…

Pois é meu caro, não se trata apenas de saudades, não! Trata-se de algo muito maior, mais sublime que a simples vontade de voltar a ver, ouvir, sentir aquilo que faz parte de mim mesmo. É o sentimento da presença de algo superior que nos domina além da simples lembrança, é a nossa própria raiz que ficou fincada na terra à qual pertencemos e a qual nos pertence, espaço, chão e gente, obras dos meus antepassados, dos que já se foram e de quem aprendi tudo com o dever inconsciente de passar tudo como herança às futuras gerações.

Não se trata de uma simples alusão a um patriotismo inconsequente, de um regionalismo estéril, de uma lembrança vaga, é sobre tudo saber e ter consciência, nessas horas, a quem e aonde pertencemos, quem somos e de onde viemos. Um norte indelével.

Isso é o que chamam de cultura, aquilo que você traz dentro de você e que nada nem ninguém irá lhe roubar, lhe arrancar. É tudo aquilo do qual não se renuncia por mais que se queira, é essa sensação de pertencer a algum lugar, pertencer a uma origem que te fez com defeitos e virtudes e isto, creio eu, não é apenas uma mera saudade.

Assim, meu caro, pensando com calma, pés no chão, se percebe que nunca nosso lugar, nossa gente, nossos hábitos serão simples fotografias dependuradas nas paredes, elas vão penduradas dentro da alma de cada um de nós, sempre e sempre muito vivas.

*Roque Samudio é arquiteto urbanista e atual diretor de Patrimônio Cultural na Secretaria Nacional de Cultura no Paraguai.

Alguns anexos:

*https://spcity.com.br/os-indios-paulistanos-guarani-estao-a-70km-da-praca-da-se/

*https://www.google.com/search?q=coral+de+crian%C3%A7as+da+tribo+guarani+de+s%C3%A3o+paulo&oq=coral+de+crian%C3%A7as+da+tribo+guarani+de+s%C3%A3o+paulo&aqs=chrome..69i57j0i546l2.16940j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8

 

 

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Roque Samudio

Roque Samudio é arquiteto-urbanista formado pela Universidade Federal de Pernambuco. Especialista em Patrimônio Histórico e Cultural. É arquiteto especialista em Patrimônio da Secretaria Nacional de Cultura do Governo do Paraguai.

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