As reeleições do senador Rodrigo Pacheco e do deputado Arthur Lira, para presidir o Senado e a Câmara Federal, na legislatura que se inicia, exibem a mais vistosa dentre as práticas republicanas: a lei franciscana, mais conhecida como a norma do que “é dando que se recebe”.
O resgate da política emerge com o balcão de ofertas do velho ofício de mercantilizar os apetrechos do escambo que se instalou nos prédios icônicos de Brasília.
Sustentáculo?
Lira, até pouco tempo, era considerado o sustentáculo do governo Bolsonaro. Sua votação extraordinária – 464 votos, entre 509 votantes – o entroniza como sustentáculo do governo Lula 3.
Cooptou o apoio de 20 partidos com a expectativa do poder nos próximos anos. A passagem de um lado para outro é menos complicada do que vestir fantasias de carnaval.
Comportas abertas
Pacheco foi salvo pelo gongo de Lula, que teve de abrir as comportas da administração, sob o risco de ter de governar fazendo negociações com o senador bolsonarista Rogério Marinho, do PL do RN.
Marinho, chegante à Câmara Alta, quis logo pular na escada e exercer o comando do Senado sem nunca ter sido guerreiro do planalto. Um crente em milagre.
O que significa a eleição de Lira e Pacheco?
Um recado meio brabo no presidente da República. Mesmo que tenha dependido de Lula para sua reeleição, Rodrigo Pacheco, para reposicionar o respeito, deve conduzir a Câmara Alta com os olhos para a divisão no corpo senatorial, o que exigirá vitaminas permanentes para o Executivo levar a cabo suas pautas congressuais.
Lula não terá maioria confortável para dar as cartas. E, por parte de Lira, na Câmara, não há como deixar de lado a observação de que ele, do alto de sua votação, se sentirá como primeiro ministro.
Um perigo. Já imaginaram uma peitada entre Lula e Lira? O fato é que o petista terá base mais estreita de apoios do que dispunha nos dois governos anteriores.
Lula com ares de mudanças
Mas Lula mudou. Como Camaleão, banha-se com as cores do mimetismo. Respira os ares da conveniência.
Um olhar mais atento sobre a índole presidencial permite distinguir um verniz mais denso sobre a pele de Lula, significando que ele se previne contra a inclemência do sol, sem querer usar o desdentado facão petista para enfrentar as oposições e deixar de atender reclamos de correligionários. Fala-se que teria deixado alguns na chuva.
Luiz Ignácio mais maduro, experiente, cuidadoso, tomar cuidados para agradar o maior número possível de parlamentares que chegam com muita sede ao pote. Vai ter água bastante para satisfazer a todos? O número de cisternas é imenso, 37 ministérios.
Mas é um contraste observar os traços arquitetônicos de Brasília, a capital desenhada para servir de ícone como futuro das cidades, abrigando práticas carcomidas da gestão.
Onde está a renovação?
Onde está o verniz da inovação na nova nomenclatura governamental? Ministério dos Povos Originários? Marketing de marca? O Conselhão, que poderia ser excelente ferramenta de democracia participativa e que pode se transformar numa ala VIP para assento dos Poderosos?
Vice-presidente, Geraldo Alckmin, não deixe essa bela ideia ser lobby para os oportunistas.
Importa reconstruir, ao lado dos restauros sobre monumentos e obras vandalizadas dia 8 de janeiro, as pontes com o Poder Judiciário, que tem sido alvo de bombardeios.
O nosso Poder mais admirado, que se elevava acima das questiúnculas entre os outros Poderes, foi jogado na vala comum das expressões sombrias e negacionistas.
Conseguirá o STF punir os responsáveis pela tragédia perpetrada por bárbaros dia 8 de janeiro? Terá sua imagem novamente reposicionada como a Casa da Justiça? Estará livre das amarras que a prendem ao círculo de mandatários patrocinadores de indicados para compor seus altos quadros?
Apadrinhamento
Quando poderemos evitar designar ministros sem seus padrinhos: Fulano de tal, ministro de sicrano; beltrano, ministro do presidente de tal… (aliás, é tempo de debater critérios para nomeação de ministros, organizações da sociedade civil que podem participar do processo, tempo de duração do mandato, etc).
Repaginar a cultura política
Na verdade, os tempos em curso sugerem cortar os males pela raiz. Ponto um: repaginar a cultura política plasmada no patrimonialismo.
A República deve ser entendida como um ente coletivo, não como “coisa nossa”. Urge acabar com o jeito perdulário de ser do brasileiro, com a visão do Estado-mãe, providencial e protetor, no seio do qual se abrigam a ambição das elites políticas e o utilitarismo de oportunistas.
Rigor, ordem e moralidade
Ordem e disciplina nos gastos. Rigor no preceito constitucional da economicidade e moralidade. Uso racional do espaço público. Coordenação eficaz dos planos de obras.
Qualificação e treinamento dos quadros funcionais. Elevação geral do nível educacional da população. As vias, todas com sua importância no conjunto, se completam.
No momento em que o mais modesto dos brasileiros conseguir decifrar a conta dos exageros nos umbrais da gastança, as distâncias entre os compartimentos da pirâmide serão menores e o Brasil, maior. Meta para mais de uma geração.
Responsabilidade para novos governantes
A nova leva de governantes precisa substituir as velhas práticas: evitar fatiar a administração em lotes, distribuindo cargos, benesses e posições.
Cuidado para que os programas de assistência social não se transformem em moeda de troca do fisiologismo paroquial. É mais do que hora de governantes e equipes lavarem a imagem para tirar as sujeiras e limpar protuberâncias da pele.
*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
*As opiniões do autor são de sua responsabilidade